Razão




Fecho meus olhos e de repente estou caindo, caindo, caindo, e nada surge para me segurar senão você. Abro os olhos e não vejo nada que não seja você. Levanto da cama, jogo água no rosto e é você que vejo no espelho do banheiro. Tomo café da manhã — literalmente café, quente e forte — e imagino-me, num momento de fraqueza, eu sei, você sentada ao meu lado. Esses momentos de fraqueza são tão recorrentes que nem me incomodo em tentar detê-los: Eles apenas surgem. Quando você aparece e quando vai embora. Todos os meus momentos do dia são um emaranhado desigual de fraquezas que ninguém deveria se permitir. Mas acontece. Você acontece. E tudo o mais torna-se mera plateia diante do espetáculo. 

Estou na rua, mas é por você que procuro debilmente. Pergunto-me se você me reconheceria ao longe, se notaria a cor do meu boné dentre tantas outras cabeças, ou se meu rosto comum te chamaria a atenção no meio de indivíduos sem nome. Agacho-me e amarro meus cadarços me imaginado amarrando os seus, se você usasse tênis. Calculo mentalmente quantos minutos teremos para conversar ao longo do dia, e percebo o quão poucos eles são e sempre serão. Mas não me abato. Olhar-te já é o bastante, como um copo d’água para um moribundo perdido no deserto. Porém, sei que algum dia não será o suficiente. Meu coração transbordará ao ponto de as palavras jorrarem e a verdade se amontoará em seus ombros. Poderei ver o brilho dos seus olhos mudar. Poderei ver aquilo que me faz acordar todos os dias alguns passos mais afastado, até o ponto donde eu já não mais a veria. 

Seria destruído e você, minha razão, não me veria nos destroços que você me deixou.

Ponho o uniforme e começo a anotar os pedidos das mesas, esperando o momento de você chegar. Olho continuamente para a porta, sem nem ao menos conseguir disfarçar meu interesse, e temo, no fundo, que alguém descobrirá. Alguém olhará o brilho intenso que toma meus olhos castanhos quando você aparece, e deduzirá o óbvio. Verá como vigio a entrada da cafeteria e como meu corpo se atrai para ela como soldados esperando um sobrevivente amigo, e saberão. Mas, na maior parte do tempo, é em apenas você que penso, seu rosto misturado aos conhecimentos empíricos de anotar e servir pedidos. Sorrio, ainda, não porque amo trabalhar aqui, mas porque cada minuto que se passa significa que está mais próximo de você chegar. 

É tão óbvio, e mesmo assim, por algum motivo, ninguém repara em meu sorriso ou em meus olhos luminosos demais para alguém que passou meses num imenso vazio autodestrutivo. 

É você, minha razão, que me faz agir assim. Que me faz deixar de pensar logicamente e me faz parecer com os poetas românticos, como o eu-lírico que se vê numa câmara escura e ela é a única que poderia oferecer-lhe uma corda, para longe de seu sofrimento. Mas você, minha razão, não é meu sofrimento. O sofrimento é todo o resto. É todo o momento em que você não está lá. É abrir os olhos e perceber que você não está lá de verdade, é estar no banho e brincar comigo que é a sua silhueta atrás do boxe do chuveiro. Felizmente, o resto desaparece quando te olho. 

Tudo desaparece de repente, o que é paradoxal, porque você é meu tudo. Meu mundo se resumiria aos seus olhos negros e seus lábios vermelhos. Ao seu cheiro de baunilha, flores, chuva e estrelas. Sempre acreditei que a paixão fosse uma doença, todas as pessoas sentiam essa coisa e sempre se transformavam em autômatos guiados por emoções tão catastróficas quanto uma guerra. Era tão ridículo. Então você apareceu e, como uma maldição lenta e irresistível, eu caí. E voei, e flutuei, e me arremessaram às profundezas da Terra. Foi quando que tudo que não era você, virou o resto. E me vi, desesperadamente, nessa coisa que me gravita até você. Desejei com todas as forças, num dia de sábado, que a coisa não passasse de uma paixão. Apenas uma pequena paixão que os seres humanos experimentam de tempos em tempos, e seguem em frente, só guardando na memória os bons momentos, se isso. Talvez eu me esquecesse de você, ou só me lembrasse de seus lábios vermelhos, sem nem lembrar exatamente da cor do vermelho, se era sangue arterial ou pétala de rosa, maçã ou pôr-do-sol. Porém, isso não aconteceu. 

Tenho a impressão de que me lembrarei de você para sempre. Naquele dia de sábado jurei que seria uma paixão pequenina, mas agora, olhando para a entrada da cafeteria, servindo e anotando, sei a verdade. Caí em areia movediça e como um verdadeiro poeta romântico e masoquista, movo-me cada vez mais para baixo. 

É ridículo. Estupidamente ridículo. 

E eu não posso evitar. 

E nem me importa mais.

Ah, se você soubesse o quanto me controla, se assustaria. E fico feliz em permanecer em silêncio. Queria que soubesse que há um ser humano no mundo que sente essa coisa por você, mas não posso permitir que saiba que seja eu. Somente eu, pois sei que não há pessoas no planeta que sentem o mesmo. Sou um oceano e lagos não se comparam, e mesmo assim, sei que seu destino será junto de um deles. 

Novamente, não me importa. Pois, afinal de contas, é o resto.

Faço a terceira leva de café de modo automático, e dou uma olhada em meu relógio de pulso, continuamente. Essa coisa é caótica, e não há nenhuma parte de mim que queria nunca ter te conhecido. Encho as xícaras e as ponho na bandeja. Talvez algum dia eu tenha coragem de deixar um bilhete, ao estilo dos tempos de escola, mesmo sem nunca ter recebido ou escrito algum. Pego a bandeja e começo a caminhar.

Caminho, caminho e caminho. Desvio das pessoas e das mesas. Eu caminho.

Passos. 

Café. 

Pessoas.

Paredes brancas.

Caminho, caminho e continuo caminhando.

Sinto o cheiro de estrelas e sei que é você.

Você aparece na entrada e se encaminha para sua mesa redonda e habitual, e uma esperança me diz que você esperando por mim. Meu coração já corre de um lado para o outro, arrebentando meus ossos, órgãos e alma, e a cafeteria desaparece psicoticamente, e você, minha razão e vida, se transforma na protagonista de todos os meus sentidos. 

Coloco a bandeja na mesa.

Vou até você. 

Até você.

Passos.

Vejo-te sentando e me obrigo a não correr até você e pedir, gentilmente, a eternidade ao seu lado. 

Você sorri.

E eu sorrio também. 

E não há mais nada no mundo que importa agora, pois é você, sempre você, que ordena minha gravidade, pois sob seu poder solar sou mera lua. E o brilho em seus olhos, oh, o brilho! espero que o brilho nos meus não te assuste, mas Deus sabe o quanto não posso evitar. O sentimento reconhecível é perigoso, mas essa coisa é perigosa desde o ínicio. Sentir se constitui como uma tragédia, mas tragédia maior é não sentir. Mas minha querida, imploro-te que não perceba, pois tudo seria destruído ao mínimo segundo.

Pois tudo o que tenho é você, ver você e ouvir você, os gestos e olhares ignorantes à imensidão de minhas emoções; e isso, é suficiente, não posso pedir mais, pois sua visão é que me basta, é o que me move fora da cama todas as manhãs. Seus olhos olhando para mim vale-me qualquer esforço. E seu sorriso agora se abrindo justamente para mim, vale-me todas as dores e vazios que sinto longe de ti. 

— Você — você me diz e eu sorrio sem qualquer defesa — se tornou o motivo de eu vir aqui todas as manhãs.

Você continua me olhando adoravelmente e parece mergulhar nos quilômetros intermináveis de minhas íris. Eu viajo por seu rosto, por seus olhos e lábios, viajo por você e tão você somente; por favor, diga-me que sente o que está acontecendo, diga-me que você me olha e sabe só de ver-me reluzir a você; mas eu não posso fazer nada além de olhar em êxtase. Suas palavras ressoam nos recônditos de minhas mente, alma e coração; não há nada no Céu ou na Terra que me fará não recordá-las todos os dias pelo resto da minha vida.

— Mas — e então surgiu em seu semblante a sombra de uma tristeza desconhecida — eu vou embora. Vou me mudar do estado e não vou mais poder voltar. Deixarei tudo para trás.

Senti-me transbordar para todos os lados, o gelo tomou-me o coração por completo; diga-me que você não fará; diga-me coisas bonitas; não me fale mais coisas que me destruam;

— Você vai nos deixar? — minha voz sai em algo próximo a um coração partido, mas não consigo dizê-lo de outra forma. Não há em mim coração partido pois ela levou-o com suas palavras. Todo o meu ser pertence a ela, não somente meu coração esfarrapado. A tragédia em minha voz ressoa. Tragédia em ter me perdido nela.

“Você vai me deixar?” 

Sua mão pega a minha. A maciez, a delicadeza, o seu toque; ah, eu poderia chorar de felicidade caso ela não significasse nunca mais tê-la. 

— Eu sinto muito — você me diz e de repente, sua voz se parece com a minha; há dor nela e me dói perceber finalmente a similaridade em nossas dores — você é uma garota maravilhosa. Sinto tanto por não poder te prometer nada além de me lembrar de você para sempre. 

Suas duas mãos acariciam a minha e quase acho a eternidade chegou a nós. 

Logo, você se vai. 

Você não pediu café ou suco. Você não pediu nada além de meu perdão e sobrevivência. Você passou pelas portas da cafeteria e, uma vez, olhou para trás. Num mero segundo nos reencontramos e fomos felizes e infelizes logo em seguida. Perdi você na multidão. Você se foi como se nunca tivesse aqui estado. 

E eu, com as mãos formigando, sem expressão, olhos ardendo e interior completamente destruído, eu, torno-me apenas uma garota qualquer limpando mesas e servindo clientes. Você também tornou-se uma mulher qualquer no meio da multidão? 




















Razão Razão Reviewed by Alana Camp. on agosto 15, 2017 Rating: 5

Nenhum comentário:

Tecnologia do Blogger.